Eu amo ouvir álbuns. O conceito da sequência de músicas enquanto obra completa representa muito da minha relação não somente com a música mas com a arte num geral. Talvez porque, ao contrário das composições em si, ou quadros, ou esculturas, ou filmes, foi uma forma de expressão que eu aprendi a amar, em oposição a ter sido ensinado pela escola ou pelos meus pais o quanto era importante. Um statement artístico completo com (geralmente) 40 a 50 minutos de duração? Injete nas minhas veias.
Mas eu também sou fascinado por pequenos “bolsos” de músicas dentro de álbuns. Pequenas sequências temáticas que parecem ser um mini-álbum dentro daquela obra maior. Se o álbum como um todo é composto de músicas que são primas, em um dado momento ele engata uma sequência de músicas irmãs. Não consigo deixar de pensar nas últimas cinco músicas do Suck It and See, do Arctic Monkeys, como um EP de soft rock romântico divorciado da estética stoner do começo do álbum. É um fenômeno mais observável no auge do vinil, eu sinto. Já que existe uma divisão física entre duas metades de um disco, a divisão das músicas em si fica mais óbvia — para o ouvinte e para o artista que está organizando a ordem do álbum. O Bringing It All Back Home do Dylan me vem na cabeça imediatamente, com seu lado A elétrico e B acústico.
Qualquer pessoa que entrou em contato minimamente com qualquer rede social minha nos últimos… vá, 3 anos, provavelmente notou que eu sou uma pessoa com uma certa obsessão pelos Beach Boys. Meio cômico considerando que eu sou uma pessoa pouquíssimo de ir à praia, mas eles também não eram surfistas então fica no elas por elas. Mas eles me pegam muito na sinceridade quase infantil de muitas das letras e no quanto os seus melhores instrumentais parecem ter sido feitos com o carinho devido. E se as músicas sobre surf e verão do começo da carreira não combinam muito com meu temperamento, os momentos introspectivos e melancólicos desse período pré-Pet Sounds me encantam de um jeito que nada que tinha sido feito no rock até aquele momento consegue.
E em nenhum momento até 1965 eles conseguiram capturar tanto esses sentimentos quanto no “bolso” de músicas no lado B do álbum The Beach Boys Today! Com ponto de exclamação mesmo! Preenchendo toda a segunda metade do disco (fora a skit de estúdio que fecha o álbum), essa sequência de músicas é tranquilamente uma das mais bonitas da música pop. São cinco baladas influenciadas em temas e produção pelos hits das gravadoras Motown e Philles, como manda a cartilha de estilo do Brian Wilson.
A primeira é a minha favorita. Please Let Me Wonder é uma música devota da paixão, mas escrava do medo. A letra implora, não pela reciprocidade, mas pela permissão para imaginar que o eu-lírico seja o alvo de seu amor. O instrumental complementa essa sentimentalidade perfeitamente. A banda de músicos de estúdio Wrecking Crew adiciona novos elementos a cada linha do verso, como uma confissão planejada se ergue por cima de pontos que foram ruminados até o limite na mente do letrista. É uma posição introspectiva um tanto nova para a banda e certamente influenciada pelo controle criativo que Brian recebeu após se retirar das obrigações de performance e turnê dos Beach Boys, e ao mesmo tempo pelo fim do ritmo frenético que essa rotina impunha.
I’m So Young é um cover de um single dos anos 50, mas a temática de ser novo demais para casar com a pessoa amada vivia na mente de Brian Wilson, aparecendo em We’ll Run Away no ano anterior e sendo aperfeiçoada em Wouldn’t It Be Nice no ano seguinte. O slap-back na guitarra que marca a outro da música, ali por 2 minutos, soa como um abraço no coração. Kiss Me, Baby tem a sonoridade mais Pet Sounds das cinco e isso se deve em boa parte ao arranjo mais complexo de harmonias vocais, que soam tão angustiadas quanto a letra, que evoca o arrependimento por uma briga entre um casal adolescente, pede.
E assim como o seu álbum “paralelo” na discografia dos Beatles, Today! também conta com uma música de masculinidade tóxica, ainda que não tão agressiva ou misógina quanto Run For Your Life do Rubber Soul. She Knows Me Too Well é mais autoconsciente: Brian admite que trata sua namorada mal e que não merece o que ele tem, mas se conforta na ideia de que ela ficará com ele porque “ela conhece ele bem demais” e sabe que ele realmente a ama. É interessante pensar sobre a posição dessa letra no rol da toxicidade do pop dos anos 60. Por um lado, ela dialoga com a naturalização do abuso (ainda que aqui ele não seja físico) de um He Hit Me (It Felt Like a Kiss), mas ao contrário dela, apresenta um homem em conflito por entender que seu comportamento é errado e doloroso para seu par. Por trás da letra, Brian e seus irmãos foram vítimas de violência doméstica da parte do seu pai, e é possível que sua experiência como alvo de abuso tenha dado o viés crítico na sua hora de cobrir esse clichê pop.1
E depois de quatro músicas cantadas por Brian Wilson, seu irmão Dennis fecha a sequência com In The Back of My Mind, uma balada desesperada sobre um homem num relacionamento perfeito que se encontra assombrado por pensamentos de um possível término — uma ansiedade tão forte que o impede de apreciar a felicidade que está na sua frente. Enquanto a rouquidão da voz de Dennis Wilson o impede de cantar os altos falsetes que caracterizam as performances anteriores de Brian, é essa mesma limitação que torna a música emocionalmente crua e confessional. As cordas e o arranjo de metais evocam a vida “abençoada” da letra, alimentando a imagem de sofisticação e se recolhendo na ponte, quando o cantor se abre sobre sua ansiedade.
Toda essa sequência de músicas que eu mencionei aqui não chega a bater 13 minutos. Mas as cinco são tão mágicas e complementares que eu não consigo resistir: de In The Back of My Mind eu invariavelmente volto pra Please Let Me Wonder e começo tudo de novo. E de novo, e de novo. E eu posso passar meses sem ouvir esse ciclo de músicas, mas toda vez que eu volto pra ele eu sou transportado pro mesmo universo de sons e sentimentos que parece ter sido feito à mão para mim. Na música pop, o mais curto dos statements pode ser o mais poderoso e aquele pro qual você mais quer voltar.
oi! vitor aqui. inspirado nas reviews que eu escrevi pra minha lista de top álbuns da minha bolha, eu resolvi começar a escrever sobre música de forma minimamente séria, mas também livre. não sou jornalista nem crítico nem sequer diria que eu estou escritor de nada, mas eu gosto muito de música e acho divertido colocar meus pensamentos no papel. a minha ideia é soltar um texto aqui de quinze em quinze dias, sobre o tema que estiver na minha mente na hora. também quero colocar textos de amigos! vamos ver no que vai dar. por hora é isso aí.
Existe muita coisa a ser dita sobre apreciar, produzir e ser tocado por arte que vem de uma perspectiva tóxica. Quero escrever em algum momento sobre minha experiência pessoal com isso mas certamente não é pra hoje.
Compartilho de uma experiência parecida. Eu fiquei completamente submerso no lado B do Today! em 2019 e no comecinho de 2020, antes da pandemia. Essa parte funciona no contexto do album, mas é uma experiência muito diferente escutar apenas esse lado. É uma sensação doce e aconchegante. A minha percepção, certamente, é influenciada pelo momento feliz que eu vivia, e sempre que escuto sou transportado para esse tempo. Eu quase sinto o gosto das comidas que eu comia e sinto um abraço demorado e quentinho das coisas que costumava fazer. Com certeza uma das sequencias de músicas que eu mais escutei na vida.
Se alguém se interessar, a música "Guess I'm Dumb" foi considerada para ser incluída nesse "bolso", mas nenhum membro se sentiu confortável cantando. Vale a pena escutar e imaginar como poderia ser.