recentemente eu venho me sentindo especialmente atraído por música de baixa qualidade de gravação. existe algo meio mágico em ouvir uma música que soa como algo que você deveria conhecer a vida inteira, “perdida” numa demo mal gravada, disponível apenas num bootleg estranho que você conheceu no youtube, ou então simplesmente lo-fi por decisão própria do artista.
existe um charme muito inerente a ouvir o tipo de música que merecia um nível absurdo de produção, ser tocada num momento memorável de um filme ou então entoada por um estádio, com o tipo de fidelidade sonora de uma gravação de celular que você recebe de seu amigo músico numa hora aleatória que ele resolve te mandar no whatsapp1
em 1977, brian wilson havia voltado a ser a principal força criativa dos beach boys2. depois do fim das gravações do meu xodó, The Beach Boys Love You, ele focou suas forças no que se tornaria o segundo grande álbum perdido da banda, Adult/Child. inspirado por big bands e standards americanos e impulsionado pelo apoio da banda à sua liderança, brian escreve still i dream of it.
eu sinto que as pessoas ignoram que brian wilson sempre foi extremamente ambicioso. em parte porque a ideia dele como um tipo de “outsider” que acaba por fazer esses grandes clássicos parece mais interessante do que a de que ele sempre foi extremamente ambicioso. still i dream of it, por exemplo, foi escrita por ele para ser interpretada por ninguém menos que frank sinatra.
e a música definitivamente soa como algo que ele cantaria. a progressão dramática de acordes, a letra enquanto grande statement de vida (“i found life today/i made mistakes today/will i ever learn the lessons/that all come my way”) e, na versão final, um arranjo de cordas, instrumentos de sopro e backing vocals. mas não aconteceu. sinatra nunca cantou still i dream of it, e pior: os próprios beach boys nunca lançaram ela num álbum de época.
o lançamento de Adult/Child em 77 caiu por terra. seus colegas de banda mike love e al jardine, em especial, acharam que era um álbum muito estranho e esotérico para o público da banda. still i dream of it só saiu numa compilação de 1993, e a demo do brian só num álbum de reinterpretações alguns anos depois.
essa semana, mais do que nunca, guided by voices bateu pra mim. a banda de rock alternativo dos anos 90, notória pela frequência de lançamentos (38 álbuns desde o começo da banda, com 9 só nos últimos 4 anos) e pela estética sonora lo-fi, faz um som que me lembra muito as bandas da invasão inglesa dos anos 1960. em especial, game of pricks do álbum alien lanes está tocando na minha cabeça em loop todo dia. segundo meu last.fm, eu ouvi ela 35 vezes desde segunda passada, seja em casa, trabalhando ou em viagem de carro.
e é realmente uma música fascinante. ela tem 1min33, mas eu nem tinha reparado nisso direito até ter que olhar agora, porque eu sou incapaz de ouvir ela só uma vez. dito isso, ainda no tema dessa edição, ela soa como se tivesse sido gravada numa torradeira. especificamente uma torradeira de quatro canais, com uma sonoridade de fita cassete gasta. mas isso realmente importa quando você está ouvindo uma música pop tão inegavelmente chiclete?
e veja, a baixa fidelidade aqui é 100% uma escolha estética. o guided by voices foi pra matador records depois do seu breakthrough independente, bee thousand, e certamente eles tinham dinheiro o suficiente desse contrato pra fazer um álbum tão bem gravado quanto eles quisessem. na verdade, olhando em lançamentos anteriores da banda, você encontra músicas muito mais bem gravadas com um som muito mais tradicional e comercial.
tentando me inteirar sobre o que levou a essa decisão, eu achei algo fascinante numa entrevista com o único membro consistente da banda, robert pollard: a intenção dele era lançar músicas que soassem como bootlegs dos beatles.
em 1993, os beatles ainda vivos receberam fitas demos do john que a yoko guardou dos anos 70. com a ajuda do produtor e líder do ELO jeff lynne, eles transformaram essas ideias antigas do john em verdadeiros blockbusters musicais, que acabaram sendo os últimos lançamentos da banda (contando com o último, now and then, que precisou de avanços tecnológicos e diretores de senhor dos anéis pra sair).
e olha. eu amo o que eles fizeram com as demos, acho que elas ficaram ótimas e especialmente quando eu era mais novo elas significaram muito pra mim. mas… as demos originais do john que apareceram na internet de lá pra cá são absurdamente lindas. essa de cima é uma no começo do que seria real love, mas também acabou virando i’m stepping out, do primeiro álbum póstumo dele.
eu sinto algo muito bonito ouvindo um artista tão grande e famoso tocando num ambiente íntimo, gravando suas ideias pra si e pro futuro, sem ter terminado suas letras ou sequer a estrutura da música. existe algo muito humanizante aí. às vezes a melhor versão de uma música é só a ideia dela que um dia poderia ter ido pra algum lugar. não necessariamente o que ela chegou a ser, mas tudo que um dia ela poderia ter sido.
edição diferente hoje, espero que vocês tenham gostado. essa especialmente foi zero edição só fluxo de consciência. em parte pela vibe do assunto. obrigado por lerem!
num tema adjacente, eu gravei um cover de you won’t see me dos beatles em duas horas sábado, em parte enquanto um experimento de gravação lofi.
fora isso, eu achei uma gravação que eu fiz durante a pandemia, num gravador de fita que eu tinha quando era criança, de between the bars do elliott smith. acho que tudo isso faz sentido com a ideia da edição de hoje
essa playlist ficou meio complicada de fechar porque tem tanta coisa que eu gosto nessa vibe que só tá no youtube… mas acho que ficou legal ainda asism
sim eu sou exatamente o amigo músico que manda demos pros amigos e colegas de banda em horários completamente aleatórios sem aviso prévio
sim eu estou falando deles de novo. vai acontecer algumas vezes
cara, eu gostei tanto do seu cover. vc teria um link de download?
eu fiquei meio "-_-" com now and then, justamente pq a estética da demo parecia tão apropriada pra faixa. o mistério, o estranho sentimento de nostalgia por algo que não aconteceu, os pensamentos de "como teria sido".
ótima escrita
a gravação no k7 ficou maravilhosa! tb ando viajando muito nos sons que usam lowfi como estética, elemento de criação