Chappell Roan e essencialismo de gênero
You'd have to stop the world just to stop the feeling
Sabe quem é boa demais. Chappell Roan. Eu tenho uma resistência natural a qualquer artista que eu sinta que está particularmente hypada por pessoas particularmente jovens e particularmente online. Também já me decepcionei antes com artistas recentes que têm uma estética incrível e cuja obra não chega nem perto de alcançar as imaculadas vibes (estou olhando pra você, Ethel Cain). Fora isso, é muito difícil saber de antemão hoje em dia se uma artista de Pop Alternativo realmente faz música empolgante ou se eu vou dar play num equivalente sonoro de 1mg de Alprazolam. Chappell Roan, felizmente, é tudo de bom.
Aos menos online, ela é uma cantora de estética camp (pense Cyndi Lauper, Culture Club) que escreve sobre ser queer e emocionada, tendo se tornado um fenômeno viral depois de abrir pra última turnê da Olivia Rodrigo. Mas tudo o que você realmente precisa saber, você descobre nas músicas dela. Good Luck, Babe!, o single desse ano, é uma música pop que soa genuinamente enorme e, ao contrário de uns 90% do “revival 80s” que é inescapável desde o sucesso de Blinding Lights, parece ter saído de alguém que sinceramente ama os clássicos da década. Mas não dá pra reduzir as influências dela aos anos 80. HOT TO GO! por exemplo, parece um dos hits do debut do Cansei de Ser Sexy, e ainda conta com um dos meus clichês favoritos do pop que é uma boa soletrada no refrão.
Essa linha de pop high concept com vocais agudos e muito vibrato vai chamar comparações óbvias, e é o tipo de posição que já trouxe várias dores de cabeça a artistas em começo de carreira (sinto muito por todo mundo que já foi comparado com a Kate Bush). Mas existe uma paleta de gosto pop muito palpável e genuíno nas músicas da Chappell Roan, que eu sinto que é o que faz ela se destacar tanto. Do mesmo jeito que eu não duvido por um segundo que a Olivia Rodrigo cresceu ouvindo Paramore e Avril Lavigne, Roan, com sua caracterização drag e grandiosidade estética, não precisa convencer ninguém da legitimidade das suas influências. Ela já citou publicamente Lady Gaga, Katy Perry, Stevie Nicks e Lorde — carinhosamente falando, ela é a maior theater kid que você vai encontrar na Billboard hoje.
Mas pra qualquer artista de uma “nova era” musical ser minimamente durador, ele tem que trazer algo de novo. Eu não acho nenhum demérito ou um pulo lógico falar que grande parte do apelo da Chappell passa pela perspectiva da qual ela escreve: ela é confortavelmente queer do jeito que só alguém que está expressando suas experiências individuais consegue ser. O cerne de toda a performance e persona de Chappell Roan, no final das contas, não é performático, e é isso que faz tudo que ela coloca nas letras soar legítimo. Enquanto lésbica recém-descoberta (parte do seu debut, The Rise and Fall of a Midwest Princess, lida com relacionamentos masculinos anteriores), tudo parece muito refrescante e à flor da pele — Casual e Red Wine Supernova exemplificam muito bem os dois lados da moeda, a primeira uma balada-lamentação por um situationship hétero que está usando-a, e a segunda um BANGER comemorativamente horny-on-main sobre um caso com uma garota.
Mas… se parte do motivo da fama repentina passa pelo ineditismo dos temas e da representatividade lésbica/queer dela, Chappell Roan parece ter uma fanbase um tanto quanto oposta à ideia dela se tornar uma super estrela pop mais “universal” em público. Claro que a história dos early-adopters de um artista se sentirem intimidados com sua popularidade aumentando é um clássico do pop — sejam as frequentadoras do Cavern Club sendo possessivas com os Beatles ou a cena do Village renegando o Dylan elétrico — mas a situação aqui parece ser um pouco diferente. Parte do meu contato inicial com ela veio de esbarrar em múltiplas threads, brigas e discourse como um todo no Twitter sobre como ela era um artista de lésbicas, para lésbicas. Não leve seu namorado para o show da Chappell Roan. Homens não são capazes de empatizar com experiências lésbicas.
E aí, chegando nisso, eu sinto a necessidade de falar sobre um assunto meio chato. A obsessão da minha geração com o essencialismo de gênero. Se dez anos atrás, quando os Millenials colavam lambe-lambes de Fora Cunha e discutiam feminismo em grupos de Facebook, a mentalidade progressista era da inclusão e da diversidade entre os artistas que recebem incentivo popular, hoje eu sinto que todo mundo quer seus artistas só para si. O TikTok é o lugar mais fácil de encontrar essa dinâmica, em que a tese do Girl Power e da quebra dos padrões de gênero gerou uma antítese conservadora que parece mais interessada em definir quem pode consumir um tipo x de mídia do que garantir que essas mídias diversas tenham o alcance que merecem. Não precisa ser tão online (ok. precisa ser bastante online mas não TANTO) pra ter visto alguma piada com ser just a girl, ou com The Feminine Urge, ou no outro lado da moeda um dudes rock ou male manipulator music. E óbvio, são piadas, mas existe uma mentalidade maior por trás.
E essa ideia de que apenas um gênero pode apreciar genuinamente um artista é… tão limitante. E tão oposta à ideia da validade de elevar vozes diversas na arte. No fundo acaba tendo mais em comum com aquela imbecil da Damares falando de menino usando azul e menina usando rosa do que com qualquer coisa parecida com progressismo. E uma das regras fundamentais de se escrever músicas com as quais as pessoas se identificam é falar de forma específica sobre sentimentos verdadeiros, muito mais do que tentar reduzir sua mensagem a um mínimo denominador comum para tentar ser universal. O segundo dá naquelas músicas de auto-ajuda da Katy Perry ou nas que menos funcionam da Fresno. O primeiro fez um monte de gente se identificar com… se mudar pra João Pessoa aos 17 anos? Genuinamente não entendo direito até hoje como isso aconteceu. É como um dos melhores letristas e piores pessoas já disse: “The most impassionate song to a lonely soul/Is so easily outgrown”.
Então. Perigando soar um tanto como um idiota. Eu acho que é uma coisa boa que lésbicas high-concept estejam surfando as ondas do mainstream. Eu acho que é uma coisa ruim, para a cultura como um todo e para as artistas em específico, que essas perspectivas diferentes fiquem presas a um in-group, porque esse tipo de diversidade não apenas nos torna pessoas mais empáticas, mas também mais interessantes. Nada é mais humano do que sentir intensamente, e nada tem tanto poder de conectar as pessoas quanto arte honesta. Cante do fundo do seu coração junto do hit sobre a homofobia internalizada da pessoa que você ama, mesmo que você seja a pessoa mais hétero do mundo. Se você se permitir, vai ser verdadeiro.
Não coube no texto, mas acho que o que mais me marcou ouvindo Good Luck, Babe! pela primeira vez foi o quanto ela parece, tematicamente, com uma das melhores músicas de uma das minhas bandas favoritas.
O teor queer aqui é bem mais implícito (pra não dizer inteiramente na mente do leitor), mas não dá pra negar que “When you wake up next to him in the middle of the night/With your head in your hands, you're nothing more than his wife” e “You wanna go home/Well, at least there's someone there that you can talk to/And you never have to face up to the night on your own/Jesus, it must be great to be straight” expressam sentimentos bem complementares.
Agora o motivo de todo mundo estar se agarrando a valores definidores de sua identidade enquanto parte de um grupo maior? Capitalismo. E neoliberalismo num geral. Não vou elaborar porque pra usar meu diploma com láurea acadêmica de Relações Internacionais eu quero ser pago.
Saiu um pouco tarde demais pra eu incluir no meu ponto principal, mas fica aqui que ninguém precisou ter vivido uma amizade feminina mutuamente marcada pelo medo e pela comparação, ou ser uma estrela pop, ou uma neozelandesa, ou de Essex pra sentir no coração essa canetada aqui:
E essa foi nossa segunda edição. Fica uma playlist do Spotify aqui com base nas coisas que eu falei, também atualizei a edição anterior com sua respectiva playlist. Entrei num tema polêmico dessa vez, então fico aguardando os pensamentos de vocês nos comentários. Prometo responder tudo!
Wake up, babe! New Vítor article just dropped.
Já conversamos um pouco sobre isso, mas acho que vale deixar como comentário aqui! A comparação dela com a Gaga me incomoda porque tem alguma coisa mais perigosa e sombria na Gaga e a Chappell parece seguir uma tradição mais adolescente e romântica. Nenhuma é necessariamente melhor que a outra só por isso, mas pra quem sentir falta de sangue na Chappell Roan eu recomendo Sir Babygirl, artista queer/nb que tem uma sonoridade parecida mas com um edgezinho a mais